Porque não nos entendemos

E porque as marcas devem ter atenção a isto, mesmo que os seus especialistas não sejam filósofos, psicólogos ou sociólogos.

Caso real: qual é o meu lugar no autocarro?

Um angolano, sentado no lugar 1 ( que não era dele). Eu sentada no lugar 5 (que não era o meu). Fizemos 30 km somente com o motorista.

Primeira paragem, entram pessoas. Entra uma senhora ( leste da Europa, creio) senta-se no lugar 3 (que não era o dela mas que foi o primeiro banco vazio que encontrou). Entram outros quantos e, no fim, entra um mulato (o único a sentar-se no lugar dele), e senta-se ao lado da senhora.

E começa o relato: A senhora, com um autocarro vazio, sem perceber porque razão o rapaz se sentou ao seu lado achou estranho e como não viu o seu número pergunta ao motorista onde se devia sentar. O motorista viu o seu bilhete e diz-lhe que é o lugar 1, onde está sentado o angolano. A senhora disse – então deixe estar. O angolano do outro lado do autocarro, que ouviu a conversa certamente mal, interpretou o “então deixe estar” como racismo e acusou a senhora de que a sua atitude era preconceituosa dizendo que era formado em direito humano e que vivíamos num mundo global.

A senhora – sem perceber a acusação – lá mudou de lugar  para onde estava o angolano porque o motorista disse, justificando a este último, que às vezes não vale a pena chatices e que era melhor ele ir lá para trás. O angolano lá se levantou num ato estoico, queixando-se da atitude da senhora. E completa o seu argumento com: mas deus está a ver-nos.

Para terminar, o motorista tentando amenizar a conversa com o angolano, pergunta à senhora: e se aquela menina (eu) se sentasse aqui ao seu lado, havia problema? A senhora respondeu. Não. O motorista respondeu: ah a menina já não havia problema? E nova desaprovação surgiu.

Concluindo: A senhora foi pois acusada por todos – O motorista; o mulato que ficou no seu lugar; e o angolano que foi lá para trás.

E a senhora sem perceber o que se passava (falava mal português).

E que tristeza de episódio, ein?  E que tristeza de ouvidos temos nós? E que tristeza de olhos? E que tristeza de passado? E que tristeza de moral? E que tristeza de desentendimento este.

É que era tão obvio – para mim e para quem assistiu – que a senhora só queria saber o seu número. A senhora nunca falou ou olhou com racismo. A senhora só viu um autocarro vazio e naturalmente ia mais confortável sem partilha de banco. Mas foi completamente abafada pelo desencadear espontâneo da conversa e sem falar ou perceber muito bem português, ainda se ria no meio do que se estava a passar. ( ao que os outros diziam: e ainda por cima se ri? )

E com este caso real – que acabou de acontecer há minutos enquanto vou de viagem – vi esta mulher como um folheto, marcas, campanhas, mensagens de comunicação.

Ninguém a entendeu. Ninguém a quis ouvir. Cada um fez a sua conversa. Ninguém a quis interpretar.

Provavelmente não se deveu ao não querem esforçar-se para a ouvir. O que aconteceu aqui foi uma casualidade onde de repente tudo já só é o que se pensa ter ouvido, ou hipótese b, quem nos ouve já tem um passado e uma moral tal que é impossível não deixar que os seus preconceitos respondam ou interpretem por si.

E por isso há tantas comunicações falhadas (às vezes boas e com boas intenções).

É que a verdade é que estamos mesmo dependentes dos ouvidos dos outros. Estamos mesmo dependentes do passado, das histórias de vida do nosso público. Estamos mesmo dependentes do fator sorte também, para que não hajam interferências. Estamos mesmo, mesmo dependentes.

As pessoas não ouvem metade do que se lhe diz, nem veêm metade do que está a sua frente. Quanto mais ouvirem ou verem uma marca?

Ninguém quis ouvir esta senhora e ela foi acusada. Todos ficámos de costas viradas. E o desentendimento ganhou.

No marketing e na comunicação nunca nos devemos esquecer que o público são pessoas. E que basta uma vírgula a mais, para não haver compreensão. E mesmo quando a campanha é óbvia e a virgula está lá, continuamos dependente do sujeito. E será preciso deixarmos esta atitude de pensarmos por nós próprios para podermos começar a pensar as marcas como se fossemos por exemplo Fernando Pessoa, com todos os seus outros eus, com muitos mais além de nós próprios. E o certo é que não é por acaso que ele foi um grande, grande publicitário. E que talvez tenha sido essa pluralidade que lhe deu a noção de que para comunicar é preciso pensar como o Ricardo, o Alvaro, o Alberto e o Bernardo e tantos outros mais.

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